Yvonne Miller nasceu em 1985 na Alemanha, mas prefere o calor do Nordeste brasileiro, onde mora desde 2017. Cronista e contista, tem textos publicados em várias antologias e é uma das organizadoras e coautoras da coletânea de contos cearenses Quando a maré encher (Mirada, 2021). Pela Aboio, publicou Deus criou primeiro um tatu – Crônicas da Mata (Ed. Aboio, 2022).
Do chão do banheiro, enquanto faço xixi com as pálpebras ainda pesadas, a barata me observa. Devolvo-lhe meu olhar sonolento pensando em Clarice. Mais especificamente em G.H. A bichona não se mexe. Talvez esteja morta, ou então está fingindo. Porque, talvez, no seu sistema nervoso tenha saltado um alarme quanto à minha pessoa. Às pessoas, em geral. Um alerta de inimigo. De predador. Um alerta de atenção-talvez-esse-animal-gigante-que-faz-xixi-sentado-queira-te-comer. De novo, G.H. E eu não queria pensar em G.H. e nisso tudo, muito menos antes do café da manhã. Mas Clarice tem isso. Você vê uma barata e lembra dela, empresta um livro e lembra dela, consulta uma cartomante e lembra dela. Eu nunca consultei uma cartomante, mas no dia que for fazê-lo, com certeza lembrarei dela. Eu já fiz foi tarô. A vizinha tava numa de tarô solidário, você doava dois quilos de alimentos e ela colocava as cartas pra você. Achei legal e o jogo dela é bem bonito, todas as cartas com gatos e a que mais apareceu pra mim foi um gato vermelho de cara abusada junto a um pau de madeira, o que a vizinha disse ser um ótimo sinal, porque o gato de cara abusada significa fogo, energia e criatividade, que é bem o que eu preciso para limpar esse banheiro. A barata tá aí pra me dizer isso: precisa limpar esse banheiro, viu, mocinha? E também tá me dizendo que o gato não está contribuindo com sua parte da faxina. O gato da casa, no caso, não o da carta. Mas o gato tá nem aí pras baratas. Parece até meio senil ultimamente, tem vezes que nem lembra onde está o pratinho com a ração e fica miando copiosamente, até alguém pegá-lo no colo e colocá-lo bem na frente da vasilha e dizer “olha aqui ó, tá cheio”; quem dirá caçar uma barata. De todas as formas, gato nenhum liga para barata morta. Talvez ela saiba disso, por isso nem está morta e sim fingindo. Peraí, piscou? Não, acho que fui eu. Nem tô mais fazendo xixi, agora estou só aqui sentada, quase que dormindo de novo. Há quanto tempo? Meu Deus, já pensei tudo isso, Clarice, tarô, cadeia-alimentar-que-envolve-baratas-gatos-e-G.H., faxina, e ainda nem tomei café da manhã.
Desço pra cozinha e encontro um ovo em cima da mesa.
Arte: Breakfast, de John F. Peto.